O desprazer do texto


Em meus longos anos de crítica literária, sempre evitei os pareceres negativos. Preferi falar dos melhores livros e calar-me sobre os piores. Entretanto, às vezes é preciso se pronunciar, pelo bem da cultura.

Há quarenta anos circula no Brasil uma péssima tradução de O prazer do texto de Roland Barthes, por J. Guinsburg. Na época de seu lançamento, fiz algumas observações, mas ao longo dos anos cuidei de outros assuntos e esqueci essa tradução. Acontece que ela foi reeditada pela editora Perspectiva em 2015, e novos leitores de Barthes me procuraram com dúvidas. Para responder a essas dúvidas, fui reler a tradução e, cotejando-a com o original em francês, fiquei estarrecida com a quantidade de erros que encontrei. Esses erros são tanto de edição como de tradução.

Já na abertura do livro, há dois erros espantosos, que deveriam fazer corar a revisora citada nos créditos. Primeiramente, somos informados: "Título do original em alemão: Der moderne Denkmalkulius, sein Wesen seine Entstebung" (!). Trata-se evidentemente da confusão com outro volume da editora (aliás com erro de alemão). Na página seguinte, temos a epígrafe: "La seule de ma vie a été la peur. HOBBES", frase sem sentido porque falta nela uma palavra: "La seule passion de ma vie a été la peur" (“A única paixão de minha vida foi o medo”). Aliás, por que a epígrafe está em francês, já que Barthes a traduziu do inglês?

O mesmo descuido editorial se verifica na separação dos fragmentos, que não respeita as divisões estabelecidas por Barthes, ora introduzindo um espaço inexistente no original (p. 14 e 18), ora colando os fragmentos em longos textos corridos (ps.14,18, 60, 61, 69, 73), até mesmo quando no original eles estão separados por três asteriscos (ps. 32, 59, 65). Isso quebra o ritmo do livro, composto pelo autor com tanto cuidado. E é um desrespeito à estética do fragmento, teorizada por ele em outras obras. Também são ignorados as maiúsculas e os itálicos que o escritor aplica em muitos casos. São típicos de seu estilo, dando ênfase às palavras e marcando o ritmo da frase.

Quanto à tradução propriamente dita, os erros são tantos que seria aborrecido repertoriar todos eles. Por isso, assinalarei apenas dos principais. Primeiramente, a tradução das palavras-chave do livro: "plaisir / jouissance". Por ocasião da 1ª edição, eu já havia feito a observação de que a tradução correta seria "prazer / gozo" e não "prazer / fruição". Ora, nessa reedição de 2015 o tradutor houve por bem acrescentar uma nota defendendo sua tradução, mas ela não a justifica. Não é uma questão de preferência. Trata-se do léxico lacaniano, fonte declarada de Barthes. Esse léxico já está firmado nas numerosas traduções de Lacan no Brasil, nas quais “jouissance" é traduzida por “gozo”. O gozo tem uma conotação sexual, refere-se ao orgasmo, sentido que o tradutor evita por um pudor injustificado. A escritura, diz Barthes, é o kama-sutra dos gozos da linguagem (p. 11).

Ao traduzir "jouissance" por "fruição", perde-se a diferença entre os termos, o que fica particularmente claro na pagina 27, quando Barthes diz que o prazer é contentamento, saciedade e conforto, enquanto o gozo é desvanecimento, abalo e perda do ego. E na página 31, na qual Barthes fala do gozo como perversão destituída da finalidade de reprodução. Por isso, as maiores dúvidas dos jovens leitores que me procuraram dizem respeito às paginas que vão de 21 a 31.

Outros equívocos, provocados pelo desconhecimento dos termos psicanalíticos em português, ocorrem ao longo do texto. "Demande", em linguagem psicanalítica é "demanda" (= pedido), e não "procura" (p. 9-10). "Refoulement" é “recalque"; "recalcamento" é o processo do recalque (p. 40).

Talvez piores sejam os erros oriundos do desconhecimento da linguagem coloquial ou da gíria francesas, que Barthes inclui em seus textos com frequência e graça. Assim, "draguer", que o tradutor deixa em francês, se traduz por "paquerar" (p. 9). E chega a ser ridículo traduzir "balancer", que na linguagem corrente significa "jogar fora", por "equilibrar-se em um mesmo lance" (p. 57).

Alguns erros graves: "Babil" não é "tagarelice", mas "balbucio". Evidentemente, o bebê no colo da mãe não tagarela, mas balbucia (p. 9 e 35). O erro se repete em "texto-tagarelice", que deveria ser "texto-balbuciante" (p. 33). Na p. 41, há uma sequência de palavras esquisita: "fantasmas, bolsos, rastos, nuvens". "Bolsos"?! Ora, a tradução correta seria "fantasmas, esboços, rastos, nuvens", já que "poche", nesse contexto, vem do verbo "pocher", que significa desenhar rapidamente.

Outros erros de tradução: “brouter", nesse contexto, não é “pastar”, é “mordiscar” (p. 19) (Barthes não mandaria o leitor pastar!); uma linguagem “éculée” não é “acalcanhada”, mas simplesmente “velha” (p. 22); “cambrer” não é “arquear”, mas “empinar”, inflar o peito com vaidade (p. 26); “à outrance” não é “a todo transe” (!), mas simplesmente “excessiva” ou “exagerada” (p. 51); “cadre" não é "quadro", mas "moldura" (p. 67); “question” não é sempre “questão”, aqui é “pergunta” (p. 75). E por aí vai... Deixo de lado as numerosas gralhas, os pedaços que faltam nas frases (ex: p. 56), as imprecisões.

Concluindo: essa tradução não precisa apenas de revisão, ela precisa ser refeita, para que esse livro importante de Barthes exista finalmente no Brasil.

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