Floresta de nervos
A trama e as crise que detonam a narrativa de Floresta escura, de Nicole Krauss, são banais. A cada capítulo o livro alterna a voz narrativa e a história. Na terceira pessoa há o advogado milionário Jules, de 68 anos, que questiona o sentido dos penduricalhos culturais e concretos que o dinheiro foi capaz de comprar e o rodeiam; na primeira pessoa a escritora Nicole, de 39 anos, parece viver sempre em outro lugar, e nunca em seu casamento fracassado no qual o amor terminou restrito ao mútuo afeto de marido e mulher pelos filhos.
Ambos partem dos Estados Unidos para Israel em busca de um sentido, ou de uma saída, ou ainda, de um final para a vida.
Em Krauss está presente a ótima tradição norte-americana de absorver as lições modernas sem abrir mão do compromisso de contar uma boa história (seja na literatura, seja no cinema), alcançando grande potência literária.
Se os Estados Unidos são o país da contra-cultura por excelência, isso se deve ao fato de que só uma nação onde o sonho da sociedade administrada se realizou plenamente poderia gerar esse tipo de rachadura. Em sociedades precárias como a brasileira não faz sentido a busca pelas brechas, ou pelas estradas. (Pode existir algo mais anacrônico que motoqueiros em Harley-Davidson na estrada dos Bandeirantes?) Aqui tudo ainda está em aberto (construção e ruína, como cantou Caetano), por cumprir, para o bem ou para o mal (hoje tendo a acreditar que muito mais para o mal). Seja como for, a contra-cultura não deixa de ser a parte que falta da cultura. O seu complemento que afirma o discurso positivo e assim acaba absorvido no todo.
O livro de Krauss já parte de uma América menos confiante em seu projeto de sociedade integrada pelo consumo e também com a contra-cultura devidamente pendurada em gôndolas virtuais da amazon.com. Nada mais simbólico que Bob Dylan ganhar o Nobel de Literatura.
Os dois personagens de Krauss parecem querer ir além. A brecha dessa vez é mais apertada. Não basta outro estilo de vida. É preciso o êxtase, a revelação, a doença, a dor, e, por fim, até o desaparecimento. Tudo que não deve, ou não pode, brilhar em uma sociedade controlada por algoritmos, unidades de terapia intensiva e aplicativos.
Ambos partem para Israel, a Terra Prometida, mas parece que a forma do capital já contornou o mundo todo e o autêntico é cada vez mais difícil de ser sentido. Nicole se vê numa trama que envolve manuscritos secretos de Kafka e uma grande conspiração pela literatura judaica. Mas no estilo de A aventura de Antonioni, a trama policial é simplesmente abandonada sem explicação dando preferência para as questões existenciais despertadas por ela. Jules frequenta locais religiosos tradicionais e até mesmo no deserto o projeto de se religar é mediado por uma equipe de cinema falida que filma a biografia do rei Davi.
Jules desaparece sem deixar pistas. Nicole adoece no deserto e ao mesmo tempo que encontra certa essência perdida (curiosamente resgatada nas memórias de um amor de juventude repleto de sexo selvagem), percebe que sua sobrevivência depende da volta à civilização. O ambiente frio do hospital e suas máquinas armam o contraste com o céu estrelado do deserto. Aqui sentimos de forma cruel o nó na garganta das buscas por sentido.
Jules quer usar o seu dinheiro para reflorestar o deserto. Nicole descobre que fora da civilização, no deserto, o animal homem é incapaz de viver. O retorno final de Nicole tem um toque piegas e nem poderia ser diferente.
Em nota no final do livro a autora conta que a inspiração para o título veio da floresta de Dante. Prefiro encerrar com a ajuda de alguém mais próximo.
Leonardo Fróes justifica sua reclusão afirmando que prefere ser "um detalhe da paisagem do que viver amedrontado numa 'florestas de nervos' [...] torturando-me com fabulações egocêntricas". Acredito que é na fala do poeta brasileiro, que paradoxalmente saiu de uma sociedade aberta, que vamos encontrar uma chave forte para Floresta escura. A uma geração que ganhou o sonho americano que lhe fora prometido, parece impossível escapar desse presente.
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Floresta escura
Nicole Krauss
Companhia das Letras
R$54,90, 304 páginas
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